Quem já deu por si a começar a contar histórias de criança e a pensar por que é que tem de haver tanta violência ou tanta dor? Quem já suavizou a morte da mãe do Bambi ou do pai do Simba? Quem já eufemizou algum animal que morrer queimado num caldeirão? Basta abrir um livro de contos infantis que nos deparamos com todo o tipo de mortes e sofrimentos.
Parece estranho que a maior parte das histórias infantis tradicionais tenham sempre o conceito de mal tão presente e, mais do que isso, tão nítido, tão explícito, concreto e cruel.
Qual a razão por contarmos histórias com elementos tão cruéis ou violentos aos nossos filhos? Existe alguma função que seja útil às crianças? Devemos ou não saltar a parte em que o caçador é contratado para arrancar o coração da Branca de Neve, pelo menos para crianças abaixo de certa idade? Este artigo resume algumas das conclusões da minha pesquisa para responder a estas perguntas.
Exemplos de histórias de criança
Vamos só a alguns exemplos conhecidos de histórias de criança que às vezes me param para pensar se devia editar a história, suavizar ali algumas partes, ou se devia contá-la como está.
- Capuchinho Vermelho
- O Pedro e o Lobo
- O Lobo e os Cabritinhos
- A Branca de Neve
- O Rei Leão
- Bambi
- A Pequena Sereia
- Harry Potter
- A Bela Adormecida
- 101 Dálmatas
O bem e o mal nas histórias de criança
Tudo começa porque as crianças são especialistas em detectar o bem e o mal. Ou por outra, em desejar o bem, sabendo que existe o mal. Isto quer dizer que, quer seja sob a forma de um lobo ou de uma perda, elas sabem ou intuem que existem “inimigos”. Negar isso não satisfaz uma criança.
No seu livro “Pais Apressados, Filhos Stressados“, o Mário Cordeiro salienta a importância da leitura de histórias pelos pais aos filhos. E refere precisamente que um dos objectivos das histórias de criança é a “reposição da lógica ética”. O bem e o mal têm de ser imiscíveis e, já agora, é preferível que o bem vença o mal.
Ou seja, é mais pedagógico ajudar as crianças, através das histórias, a lidar com a noção de que existe mal, do que de o negar. Porque negando isso, ou omitindo sempre, elas ficam sem forma de canalizar os seus medos e de aprender a lidar com eles. É na resolução das histórias que elas começam a perceber que, apesar do mal, dá para viver.
O que as crianças, mesmo as muito pequenas, precisam não é que um adulto finja que só existem coisas boas no mundo. Elas querem mesmo ser confrontadas com o mal, assustar-se, e depois ter alguma resolução, alguma garantia de que o bem triunfa.
Por que é que há tantos órfãos nas histórias de criança?
Assim explicado, isto faz-me sentido. Mas a minha questão então transforma-se: quão mau tem de ser o mal nas histórias de criança? Isto porque, às vezes, a minha filha de três anos considera “mau” quando uma personagem faz um disparate ou desobedece aos pais e é reprimida. É mesmo necessário ir para os caldeirões que queimam animais vivos? É mesmo necessário alguém dizer “eu quero-te comer”? Tem de haver alguém que morre? E, sobretudo, tantos órfãos porquê?
Assim de repente, o Harry Potter, a Cinderela, a Bela, a Pequena Sereia, o Simba, o Mogli, o Oliver Twist, a Matilda, a Pipi das Meias Altas, a Elsa e a Anna do Frozen, tantos órfãos. Há as órfãs de pai e mãe e também há várias órfãs de mãe em que o pai casa com uma madrasta que as trata mal ou algo do género. A proporção de crianças órfãs não corresponde às estatísticas da realidade em que vivemos. Então porquê? Para crianças pequenas deve ser das ideias mais assustadoras que existe: ficar sem os pais.
E, pensando sobre isso, é claro que há razões. Há razões literárias. Uma personagem órfã tem um conflito que precisa de ser resolvido, e isso é o que uma história precisa para acontecer. Também permite que o protagonista se exponha a perigos que, supõe-se, os pais não permitiriam que acontecesse (no Sozinho em Casa, os pais esquecem-se do filho antes de entrar no avião, o que gera todas as peripécias).
E é, em geral, uma forma de confrontar uma criança com algo que é perceptível para ela. A perspectiva de não ter os pais para a ajudar e defender neste mundo é legitimamente assustadora. Uma personagem que supera esse obstáculo é uma personagem que sobrevive por si, sem defensores, e essa é uma ideia poderosa.
Concluindo
Isto tudo para dizer que não sei ainda como abordar certos temas com os meus filhos em idade pré-escolar. Devo dizer que o Mufasa está só a dormir? Ou que nunca mais vai acordar? Ou, o que tenho feito com mais frequência, fingir que não estou a ligar muito e depois gritar “Olha o Timon!”? Não sei.
Mas percebo a obsessão da minha filha pelos Três Porquinhos e o Lobo Mau. Percebo que não lhe interesse a parte em que eu descrevo como eles eram tão amigos e que queira sempre acelerar para a parte em que chega o lobo. É aí que ela precisa de mim e percebo que seja importante passar por isto com eles. Ler histórias e ver filmes que assustam, mas em que o bem triunfa no fim. Não é o que todos precisamos?
E tu? Já te tinhas apercebido desta presença do bem e do mal nas histórias de criança?
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1 comment
Francisca.
Apreciação escrita do tema, apresentada de uma forma muito bem estruturada.
Li e reli o parágrafo que antecede a conclusão. Parabéns Francisca!